O fogo do fogão a lenha

Fogão a lenha da casa dos meus pais

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Há imensos cachos de detalhes espalhados aqui e ali em minhas lembranças. Lembranças? Ah… que pena se o fossem. Pois lembranças deixam exatamente de ser o que são quando lembradas. Tornam-se realidade. Que bom, assim os são. E foi nesta manhã chuvosa de domingo, como se eu estivesse colhendo cachos de uvas maduras e comendo-as, sentindo o sabor da casca estourando-se entre meus dentes e enchendo a minha boca com seu suco delicioso, que fui vendo, ouvindo, sentindo o cheiro e o calor do nosso velho fogão a lenha.

Na vida da gente, há porções de peripécias de grande valor, embora sejam simples. Cândidos gestos da minha mãe, por exemplo, que deixava o seu lugar no fundo da taipa do fogão pra gente se sentar, porque fazia muito frio. Palavras sóbrias do meu pai, enquanto aquecia suas botas, calçava-as e ia pro curral tirar leite. Alegres brincadeiras entre nós, ainda crianças, com a caixinha de fósforo. Ou pequenas desavenças para se sentar no melhor lugar perto do fogo. O fogo que confortava a todos, sem diferença de idade ou de gosto.

O fogão a lenha era (e ainda é) como o coração da casa dos meus pais. Infinitas possibilidades trazia. Criava laços entre nós. Era um espaço de dar prosa, contar histórias, conversar e discutir. Era ali ao redor do fogo que nasciam e morriam as raivas da gente, o mau humor, a agressividade, a falta de respeito e de regra, o egoísmo, as ruindades que nascem conosco ou que vamos assimilando do mundo lá de fora. O fogão a lenha ajudava a família a renovar as coisas velhas, mau resolvidas, com o fogo do respeito e da compreensão, do amor e da esperança.

Que pena que a minha filha crescerá sem ter, literalmente falando, um fogão a lenha em casa. Não por capricho meu, nem da minha esposa. Não porque não queiramos, nem por falta de condições. Simplesmente, é impossivel tê-lo no momento. Como substituí-lo, então? Como criar espaços em casa, que sejam assim como aquele em que cresci?

Pro inferno com as modernas invenções, que destroçam possibilidades, que atrapalham a convivência e que esfriam as relações e quebram laços familiares.  Pro inferno com as beleza tecnológicas e com as facilidades de hoje. Se há coisas positivas nelas? Ah, sem dúvida. Mas, convenhamos, fogão a lenha virtual não existe. Existem caminhos. Sim, as invenção/tecnologias podem ser caminhos que nos levam ao fogão, àquele espaço de vida. Mas, substiuí-lo, nenhuma tecnologia conseguirá.

Meu desejo hoje, ao reviver a força e a importância do sentar-se na taipa de um fogão a lenha e tomar o café quentinho que a minha mãe ou o meu pai preparou, não é outro senão que minha filha também conheça o calor dos meus abraços, o tom da minha voz, a força dos meus passos, a beleza da minha alegria e minha preocupação por ela. Meu desejo é que ela tenha sim um fogão a lenha em casa, mas não virtual, nem televisivo e nem telefônico. Que ela tenha um pai e uma mãe em casa, e que nós nunca deixemos o fogo do fogão a lenha do nosso amor se apagar.

Ronaldo Sérgio

(Razões por que meu blog se chama Rancho das Crônicas)

15 comentários em “O fogo do fogão a lenha

  1. feelingsofaguy disse:

    Hey, curti seu blog, você escreve bem, gostaria de te convidar para conhecer o meu também, espero que goste, Obrigado 🙂

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  2. Caramba, que texto!
    Realmente é uma pena que as relações interpessoais tenham ficado em segundo plano. Mas é confortador saber que há quem as valorize. Nada substitui a pecinha chamado humano.

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  3. jomabastos disse:

    O meu comentário já não está?! Com toda a certeza que deu algum erro no blog.

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  4. Bruna disse:

    Minha bisavó sempre se sentava ao lado do fogão a lenha e deixava sua xícara de café em cima. Lembro que ela somente bebia quando começava a ferver. Isso fazem mais de 14 anos, mas sempre que eu me sento do lado de um, lembro dela e de sua xícara. Tens razão ao dizer que nenhuma invenção vai ser igual a ela. Tenho dó da geração que está surgindo e não poderá sentir o mesmo que nós ao encontrarmos uma dessas relíquias da infância.
    Se eu pudesse curtir seu post 50 vezes, eu curtiria… obrigada por ter me trazido tão boas lembranças.
    Um abraço!

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  5. Gostei muito do texto e das sensações que ele me trouxe. Adorei, particularmente, esta frase: E foi nesta manhã chuvosa de domingo, como se eu estivesse colhendo cachos de uvas maduras e comendo-as, sentindo o sabor da casca estourando-se entre meus dentes e enchendo a minha boca com seu suco delicioso, que fui vendo, ouvindo, sentindo o cheiro e o calor do nosso velho fogão a lenha.

    Beijinhos,
    http://www.desapontamentos.com/

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  6. KAMBAMI disse:

    Confesso que senti o cheirinho desse café aqui. Que bom ter o fogão, que bom ter a lenha, o café e o mais importante o amor que com certeza irá passar com sabedoria a sua filha.

    Abraços! 😉

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  7. Partilho desse teu saudosismo, amigo poeta. Espero que meus filhos tenham a chance, também, de terem esse contato com o simples. E, mais do que isso, espero ser o pai que consegue tocar os filhos e se aproximar, apesar da distância que a tecnologia impõe.

    Obrigado pelos comentários, sempre generosos, no meu blog, e me perdoe por não correspondê-los com a mesma frequência. Abraço!

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